Morei nos Estados Unidos por um tempo, trabalhava de babá, mas sem problemas, isso não me incomodava. Era o que eu tinha que fazer para morar numa casa grande, com quarto, conforto, internet, carro e um cartão de crédito pra comprar no supermercado. Foram as últimas férias da minha vida. E eu só precisava bancar a irmã mais velha. Eu nunca fui, nem mais velha, nem mais nova, mas sem problemas também, eu me saí bem nessa.
Trabalhava fixo numa casa com duas meninas, já grandinhas elas, que se divertiam vendo Bob Esponja e jogando Webkinz (um precursor do Farmville para crianças - elas se enjoaram disso em poucos meses, e vocês ainda nessa), enquanto eu tentava persuadí-las a brincar no quintal, por razões óbvias: elas tinham um quintal. Às vezes eu tentava tocar o terror nelas contando da minha infância, de precisar brincar no corredor do prédio, colocando palitinho no interruptor pra que ele não apaguesse depois de 5 minutos.
A mãe trabalhava com alguma coisa que parecia importante numa empresa, nunca entendi o quê. Era ela que mantinha contato comigo, que me entrevistou, que me deu seu telefone e e-mail. O pai eu não conhecia, nem sabia quem era. A casa era uma bagunça, as meninas jogavam tudo pelo chão, e por "tudo" eu quero dizer tudo mesmo. Eu pegava umas pistas aqui e ali, pela literatura republicana espalhada, livros da Ann Coulter, uma espécie de Michael Moore conservadora, só que alta, magra e loira. Eram do pai, as meninas me disseram. Ele tinha um jipe com uma placa - comemorativa não é bem a palavra - inspirada no 11 de setembro, com uma logo representando as torres e o Pentágono - nossa, como se faz logo e produto pra tudo! - e a inscrição "Fight Terrorism". Estacionava na frente da garagem no cul-de-sac em que moravam e dividiam com 2 famílias puramente indianas.
Então, eu perguntei: o que ele fazia? A resposta: ele era professor de guitarra.
Não levei fé de primeira. Ele vivia disso? Não parecia ser uma casa de um músico, apesar de ocasionalmente aparecer um case de violão na casa, no quarto do computador havia um amplificador antigo, nada que acusasse ser a música a função principal de uma pessoa.
Conhecê-lo não desfez essa impressão. Mais americano impossível de camisa polo, bermuda e tênis com meias altas, alto e magro, ele podia ser qualquer coisa. Eu e os pais das meninas conversávamos pouco nos momentos de entrada e saída, mas nos comunicávamos através delas, das coisas que elas falavam de mim. Descobri que ele tinha um estúdio em Leesburg, uma cidade próxima. Que a irmã dele andava com o Andy Warhol e namorou o Brian Ferry. "Conhece Roxy Music?", conheço, "é mesmo?"
Não é coisa essencialmente de americano, embora eles façam isso com frequência. É fácil esquecer que esse mundo, mesmo grande, é conectado, agora cada vez mais, e as coisas viajam de um modo que não damos conta.
Não é segredo que eu gosto muito de música, logo recebi um convite para ter aulas grátis com ele, no estúdio. Lisonjeada, eu fui, um pouco envergonhada por saber que eu não sou a melhor das alunas. Leesburg é uma cidade história, em meio a campos onde aconteceram batalhas da Guerra Civil Americana. A ruazinha era muito escondida, a casa, antiga, branca, tão americana e aleatória quanto o dono. Lá dentro, uma Marilyn Monroe original de Andy Warhol na parede, guitarras lindas. Eu sentei e ele perguntou o que eu gostava de ouvir. Não lembro o que respondi, essa pergunta sempre me engasga. Só sei que ele tocou o riff original de "Rebel, Rebel" do David Bowie e eu chorei uma lágriminha.
Não aprendi a tocar mais do que já sabia, eu que sei os acordes mas não decoro as sequências de uma música, tenho dedos pequenos para fazer uma pestana decente. Eu basicamente ia uma vez por semana pra conversar sobre música, segurando uma guitarra, naquela casinha branca. Toda vez que eu chegava ele comentava das plantas na sacada. Um dia me pôs pra ouvir uma gravação de uma de suas filhas, aos 5 anos, cantando "Everybody's Talking At Me". Era fantástico. Ele era republicano, mas era meu amigo.
Repare no tênis pendurado no fio de energia.